Rodrigo Rigo Pinheiro.
A decisão é realmente preocupante. Daquelas que faz o empresário saltar da cadeira e jogar as mãos à cabeça. A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão inédita, julgou recurso da Fazenda Nacional e declarou o impedimento de distribuição de lucro e dividendos aos sócios de empresa com dívida tributária sem garantia.
O relator, ministro Castro Meira, determinou a aplicabilidade do artigo 32 da Lei nº 4.357, de 1964, a qual proíbe que as pessoas jurídicas, que possuam débitos não garantidos com o Fisco, distribuam bonificações, lucros e dividendos a seus sócios e acionistas, além de prescrever multa de 50% pelo seu descumprimento.
O assunto é antigo. Foi desenterrado mesmo. O dispositivo da Lei nº 4.357/64 foi reflexo do golpe militar e do regime ditatorial que se impuseram à época. O objetivo era impedir a distribuição de bonificações, lucros e dividendos como maneira indireta de obrigar as empresas em débito a pagar tributo.
Naquela ocasião, já diante de um cenário de clara violação aos direitos mínimos dos seus cidadãos, o presidente da República manteve a proibição sobre a distribuição de bonificações, mas vetou a restrição quanto aos dividendos. Entendeu que a ingerência do Fisco em assunto de economia interna das empresas deveria ficar restrita a casos excepcionais e que a exclusão dos "dividendos" tornar-se-ia mais aconselhável, ainda, no caso de acionistas minoritários, que restariam prejudicados por erros de uma administração que não teriam força para substituir.
Depois do sonoro, claro e racional veto, o tempo foi de esquecimento desse problema, principalmente em função do advento da Constituição Federal de 1988 que, em novo contexto histórico-político, assegurou ao cidadão princípios, como o do livre exercício da atividade econômica e o da propriedade privada. Tudo andava conforme a regra até que em 2004, a Lei nº 11.051 incluiu o parágrafo 1º, I, ao caput do artigo 32 para inserir o termo "remunerações" ao lado da antiga vedação de distribuição às bonificações.
A nova roupagem normativa deu oportunidade ao Fisco. A partir da modificação, a Receita Federal do Brasil passou a exigir o cumprimento de tal dispositivo, não permitindo a distribuição de lucros e dividendos de empresas que possuíssem débito tributário não garantido, sob a interpretação de que o substantivo "remuneração" seria gênero das espécies remuneratórias, que são "lucro e dividendos".
Com a publicação da lei e o novo ataque do Fisco, o assunto foi muito discutido nos anos seguintes, mas logo restou adormecido pela crença na razoabilidade com que o Poder Judiciário trataria da questão. Infelizmente, não foi assim que o STJ decidiu interpretar a norma legal.
O julgamento do Recurso Especial nº 1.115.136-SC, noticiado logo no início de maio, narra que determinada pessoa jurídica do setor industrial fez parcelamento de seus débitos tributários e que distribuiu lucros aos seus sócios. A decisão do ministro Castro Meira determinou a vigência do artigo 32 da Lei nº 4.357/64, mas, considerando que a empresa tinha aderido a um parcelamento tributário, isto é, possuía garantia para com seus débitos, autorizou a distribuição de lucros e dividendos.
O precedente é inédito e crítico. Muito embora o STJ tenha autorizado a distribuição de lucros nesse caso, em razão da garantia via parcelamento, a interpretação feita pelo órgão judicial é perigosa ao contribuinte. É dizer: débito não garantido, lucro não distribuído.
A incompatibilidade, contudo, entre o conteúdo da norma contida no artigo 32 e os princípios constitucionais da livre iniciativa privada e da propriedade privada são patentes. O dispositivo da Lei nº 4.357/64, até então jamais aplicado após o advento da Constituição de 1988, não restou recepcionado pelo nosso novo sistema jurídico. A proibição de distribuir lucros está em confronto direto com o princípio do devido processo legal, o qual dispõe que a administração pública deve seguir os meios prescritos por lei para a cobrança dos créditos tributários que lhe fazem jus. O próprio Supremo Tribunal Federal reiteradamente veda que o Fisco se utilize de coação indireta para receber tributos (súmulas 70, 323 e 547).
Não fosse isso suficiente, os dividendos representam uma destinação do lucro do exercício, dos lucros acumulados ou de reservas de lucros aos acionistas da sociedade. Não se trata, portanto, da participação nos lucros prevista no artigo 32 da lei, que tem por natureza ser benefício atribuído a terceiros, não relativa aos investimentos dos acionistas. Tal participação representa uma espécie de parcela complementar do salário, cujo valor é apurado com base no lucro da sociedade e decorrente da performance do administrador. Por isso, o veto presidencial, em 1964, exatamente no vocábulo "dividendo", para fins de garantir o princípio à livre propriedade, previsto no artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal.
E mesmo que se pudesse imaginar que a medida tivesse sido recepcionada pela Constituição, a ausência de garantia ao débito fiscal é problemática da empresa devedora. Vedar a distribuição de lucros é aplicar penalidade, por exemplo, ao sócio minoritário que não deu causa à má administração do negócios e suas consequências.
Inaceitável, portanto, a decisão do Superior Tribunal de Justiça ao pretender vedar a distribuição de lucros aos sócios pela mera existência de débitos perante o Fisco, quer seja pela violação dos princípios constitucionais mencionados, quer seja pela evidente quebra do fim político que se quis alcançar com essa norma quando do seu veto presidencial.
Rodrigo Rigo Pinheiro é sócio responsável pela área tributária do escritório Buccioli & Advogados Associados
Fonte: Valor EconômicoOs artigos aqui apresentados representam a opinião do autor, não cabendo ao Guia dos Contadores responsabilidade pelos mesmos.
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